Pacto Brutal Mostra Que Perdemos a Chance De Mudar Há 30 Anos

A autópsia do documentário da HBO Max sobre o assassinato de Daniella Perez nos revela que deveríamos estar mais atentos há três décadas.

 

imagem: divulgação

Em 1992 , na minha terrinha natal, observei, desconfiado, o lançamento da primeira linha de ônibus Biarticulado.  Uma inovação bem vinda para quem exercia o notável ofício de office boy, um início inevitável de carreira para quem não queria ir para a metalúrgica ou comércio. 

Nesta época, também me lembro de ter sido convidado para ir à passeata dos caras pintadas contra o presidente Fernando Collor. Eu agradeci e disse que preferia trabalhar mesmo. Eu já fumava nesta época, e se eu não trabalhasse, não teria quem pagasse meu Marlboro, L&M ou Free, esse último com baixos teores, era uma questão de bom senso.  O pessoal que me convidou fumava maconha mesmo, mas com o dinheiro dos pais.

Não há como esquecer o espanto com a abertura das Olimpíadas de Barcelona, com aquele arqueiro acendendo a pira Olímpica, e algum tempo depois, claro, vimos que não era verdade. Mas foi bom o ilusionismo, mais uma fantasia que entrou para nossa coleção de ilusões e seguimos em frente.

E o ano terminou com o lamentável, violento e covarde assassinato da jovem atriz Daniella Perez, filha da autora de novelas Glória Perez.  Um enredo trágico e aterrorizante até mesmo para este que vos relata, na época, adepto do heavy metal e peregrino dasencruzilhadas mais sombrias da periferia curitibana. Lembro que alguns veículos de imprensa chegaram a tratar do caso como um ritual satânico, seguindo a abordagem dada ao caso do garoto Evandro, de Guaratuba.

Completados trinta anos do fato, a HBO Max lançou recentemente um série-documentário, reunindo em cinco episódios, depoimentos e imagens sobre o crime.  E hoje é esse documentário que vai para a mesa fria da necrópsia para ser dissecado neste singelo blog.  Mãos à obra:

 

Uma Oportunidade Para Rever Conceitos Jurídicos

A luta da autora Glória Perez para que a Lei se tornasse mais rígida com crimes premeditados foi praticamente em vão. O documentário até mostra a entrega 1,3 milhão de assinaturas ao Congresso, a mobilização dos artistas, muito envolvimento midiático e muita comoção. No entanto, Guilherme de Pádua e Paula Thomaz, autores do crimes, estão em liberdade e com suas vidas reconstruídas. Ele, pastor na Lagoinha,  gosta de estar em evidência, o que certamente causa o maior desconforto para a mãe da vítima. Já Paula preferiu uma vida mais discreta, casou-se novamente e saiu dos holofotes. Ambos cumpriram apenas um sexto da pena, que foi de apenas 19 anos de prisão.

 

Artistas Engajados Tropeçam na Língua

A ira compreensível dos amigos de Daniela Perez nos mostra como o jogo é diferente quando o problema está nos círculos mais próximos. A empatia é seletiva. No documentário você verá artistas globais, defensores de pautas indefensáveis na linha dos Direitos Humanos, esbravejando indignados com a leniência da justiça com um crime tão brutal. 


 "Se naquela época os nossos valores tivessem mudado, 
hoje não estaríamos discutindo tantos absurdos."   

 

Imprensa Criminosa

Especulações, sensacionalismo e tudo o que hoje estamos quase acostumados a ver, naquela época era muito mais escancarado. Boatos de rituais de bruxaria e traição conjugal se juntaram à ação da defesa de Pádua, que na época ficou ganhando tempo dizendo que apresentaria provas contrárias às teses correntes.  Um espetáculo deprimente, associado ao dia do enterro, com milhares de fãs se acotovelando no cemitério, numa daquelas eternas demonstrações do Inconsciente Coletivo Sem Noção.

 

Imprensa Criminosa II

A sempre querida Folha de São Paulo questiona o fato do documentário não ter ouvido a defesa de Guilherme de Pádua.  O argumento do jornalista é que isso fortalece a tese de que houve parcialidade na cobertura do caso. E como você, meu amigo leitor, pode perceber, isso não muda em nada o fato da moça estar morta, e os assassinos livres. Por essa ótica deveriam ter sido mais parciais. 

 

Lacrando sobre Cadáveres

A Folha também coloca o caso como sendo muito “complexo”. Afirma ver elementos de sexismo, machismo, homofobia, preconceito religioso, etc.  Guilherme de Pádua tenta ganhar a mídia com canal no YouTube e declarações públicas. Progressistas usam politicamente o fato do assassino ser pró Governo para tentar associar um ao outro, custe o que custar.  O Inconsciente Coletivo Sem Noção surge novamente.   

 

Contraponto Ignorado

Não podemos deixar de citar um artigo do Jornal do Brasil, escrito pelo cardeal Dom Lucas Moreira Neves, onde cita todos os desmandos da televisão brasileira, das novelas, e coloca, corajosamente, Gloria Perez como coautora do crime. Logicamente o fez utilizando-se do mesmo estratagema de associação e relação das causas e consequências.  No documentário, claro, o cardeal é citado como inimigo, mas o artigo não está errado.  O cardeal, como poucos, mostrava um problema generalizado. Se naquela época os nossos valores tivessem mudado,  hoje não estaríamos discutindo tantos absurdos.  

 

Glória, A Mãe do Século

Talvez ainda nasça a representação de uma mãe tão dedicada e incansável. O documentário mostra Glória Perez como mãe e o passo a passo da situação toda, lidando com uma política nefasta, uma polícia incompetente e o fato de ser uma pessoa pública e midiática. Não podemos deixar de lado o fato de que sua posição social e midiática favoreceu sua ação em muitos aspectos. Gloria Perez deu um grande exemplo de perseverança , resiliência e autêntica maternidade.


Quem viveu e lembra dos fatos à época, vai notar como a precariedade moral, que naquela época se revelou através de um fato de grande comoção, aumentou e muito para nos dias de hoje estar disfarçada de politicamente correto. 

O jornalismo, a política e a justiça fizeram do túmulo de Daniela Perez mais um palco para um espetáculo bizarro e revelador do que há de pior na humanidade.

 

Obrigado pelas leituras e até a próxima.