Um
jornalista, um juiz , um promotor, um professor, e duas advogadas acordam da
sua realidade paralela diante do imaculado servente de pedreiro, que só roubou
um celular.
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Uma Justiça Branca e Gorda, desde 1636. |
Não é novidade, pelo menos para os menos distraídos, que a maior parte da imprensa seja defensora do relativismo moral. Para outros, porém, é preciso apontar o caminho para que se percebam as façanhas retóricas da mídia, como neste caso, da BBC Brasil.
Essa é a história de João, que ao ser libertado da prisão, pediu à juíza que pudesse jantar antes de ir embora. Vamos ponto a ponto, dissecando mais esse cadáver da comunicação social, portanto, álcool nas mãos, e coloquem suas máscaras e luvas.
Manchete Sentimentalista
“Posso continuar preso para jantar?” - para atingir o coração da audiência, usar a (suposta) fala do protagonista da história, dizendo que isso acendeu (tocou fogo mesmo) no debate sobre “Justiça para os pobres”.
Tudo isso faz
parte da prática do jornalismo, se honesta ou não, é outro caso.
33 milhões de pessoas não tem o que comer.
Esse número é plenamente contestável. Não é possível aceitá-lo fácil. Assim como não se deve aceitar
os números favoráveis à economia brasileira que o governo apresenta. O promotor
Luciano Sotero Santiago escolheu usar esse argumento para aumentar a comoção em
torno do caso. E sua suposta surpresa, bem, vamos reservar esse pedaço para
analisar com mais cuidado adiante.
20 Anos, negro, pedreiro
O autor
da frase é qualificado à piedade da justiça. A matéria trata de o qualificar.
Já a vítima é apenas estudante, e tem 22 anos. A vítima não tem raça, mas se ela fosse negra, talvez não houvesse matéria aqui. O crime do jovem indefeso foi roubar um celular usando uma faca, certamente ameaçando a
vítima, mas isso não importa, o promotor acha que isso é secundário.
João conta sua história
João
mora com o pai, a mãe faleceu quando ele era criança, toma remédio para dormir,
sem receita por que não consegue uma consulta médica. A família foi contatada para
comentar a história mas não quis comentar o assunto. Caros parceiros de necropsia,
se a família negasse toda a situação, isso seria publicado? Se a família concordasse com a prisão dele,
faria sentido a matéria? Talvez sim, algo como "repressão familiar como causa primária de crimes".
A Defensoria Pública tem uma Epifania
Com o pedido do paciente, a defensora Mirelle Morato Gonzaga deflagra a frase que vai espetar os corações mais desavisados: “A fala surpreendeu a todos”.
Eu diria mais do
que isso, creio que a declaração de João tenha sido um divisor de águas na
justiça brasileira. É a frase que tira das sombras promotores, juízes, advogados,
e jornalistas espantados com uma realidade que não conheciam, pois viviam nos
palacetes privilegiados dos brancos e dos heteronormativos, vendados com seus
confortos e benesses, das quais, provavelmente, abrirão mão a partir de
agora.
Especialistas Pedem Desculpas por Existir
Sotero
afirma que “muitas vezes a pessoa só consegue consultar um médico ou voltar a
estudar quando é presa”. Ele acaba de
resolver a situação da saúde e da educação com uma só facada (porque armas de fogo
devem ser proibidas, claro).
Entra em
cena Maurício Dieter, professor de criminologia da USP. Ele é categórico ao
dizer que o Brasil oferece comida dentro da prisão, mas não oferece fora dela.
Uma constatação sábia, pois o Brasil realmente não me oferece a janta, eu tenho
que compra-la, provavelmente assim como você, leitor burguês e privilegiado,
que optou por trabalhar para sobreviver.
Dieter
não nos perdoa. Sobre crimes como furto, roubo e tráfico, ele dispara (sem
armas) que a polícia prende “em flagrante sem investigar”. Um professor de criminologia poderá nos
explicar, certamente, que Flagrante é algo registrado e observado no momento em
que está ocorrendo, de forma surpreendida e incontestável*, portanto, não carece
de investigações.
Mais uma promotora entra em cena
Agora é Celeste Leite dos Santos, também promotora, que nos presenteia com uma declaração avassaladora: "Vigora
no Judiciário e no MP um perfil de homens brancos, heteronormativos. As
mulheres, e em especial as mulheres negras, são subrepresentadas. Isso com
certeza se reflete nas decisões: um juiz julga a partir de valores que ele
tem"
Resumindo,
Celeste afirma que o Direito é só uma alegoria macabra nisso tudo, e seus agentes, bem lá no fundo, fazem somente o que lhes dá na telha mesmo.
Perfil
A matéria também descobre que o perfil dos criminosos é oposto ao dos magistrados. Ainda bem né?
Mea Culpa de Sotero
O
promotor emocionado diz que os agentes do direito vivem apartados da realidade
do país. Eu ia usar uma retórica poética, mas já gastei esse cartucho (opa) ali
em cima.
A Solução Final
Para
Dieter, a solução é menos encarceramento, menos processos, menos condenações. A
massa carcerária, segundo ele, não está ali porque cometeu crime, e sim pelo
que ela é.
Essa necropsia poderia continuar, mas já temos muito sangue, e o laudo nos fornecerá evidências suficientes de que, para esse pessoal, a vítima nunca importa.
Haverá mais, sejam livres e obrigado pelas leituras.