PL 73/2021 é o resultado da ação de gente de bom coração, tal qual a mãe que sempre protege os seus filhinhos.
Paulo Gustavo no seu mais emblemático papel. Foto Revista Quem. |
Numa época não muito distante, em que eu atuava como agente
cultural amador e independente, caí na tentação de buscar o apoio das
chamadas Leis de Incentivo à Cultura, entre elas, a Lei Rouanet, o Fundo
Municipal de Cultura de Curitiba, entre outras.
A vontade de produzir um conteúdo alternativo ao mainstream era grande. E sob orientação de alguns amigos,
fui atrás de orientação sobre como
funcionava esse mecanismo. Não demorou muito para entender que esses dispositivos eram apenas facilitadores para quem já tinha o domínio da máquina,
dinheiro e bons captadores de recurso junto à iniciativa privada. Eu, e meus
amigos artistas nunca nos enquadramos, e a tentação foi afastada a pontapés e uma boa ducha fria de realidade.
Fiquei observando as mudanças que seguiram. A Lei Rouanet foi (um pouco) moralizada,
sob protestos daqueles artistas militantes e medalhões que já conhecemos, e deixou de ser
uma torneira de dinheiro que rega somente a horta dos mesmos de sempre. Maju
Coutinho, num arroubo de sanidade, diria que o “choro é livre”, mas o coletivo
dos prejudicados outrora enriquecidos não deixaria por isso mesmo.
Neste contra-ataque na guerra cultural, a estratégia já é conhecida: identifica-se uma situação que
seja um problema para os pobres artistas progressistas. Um link com um fato de grande comoção popular,
com ares de tragédia ou calamidade, e se esse fato for protagonizado por alguém
famoso, melhor ainda. Une-se a isto a manifestação de necessidade em situação
de emergência, crise financeira, colapso de empregos e formula-se um Projeto de
Lei. E temos a Lei Paulo Gustavo, de autoria do deputado Paulo Rocha, do
PT da Bahia.
O homenageado
Vocês conhecem Paulo Gustavo melhor do que eu. Não tenho certeza de que ele gostaria de tal homenagem. Meu contato
com o trabalho do ator limitou-se à personagem Dona Ermínia, uma mãe truculenta,
intransigente, com nenhuma polidez, mas com bom coração. Dona Ermínia me parece
um arremedo da Dona Armênia, personagem de Aracy Balabanian que
assisti em uma novela que não lembro o nome. De fato, Ermínia é uma boa personagem, superestimada,
mas boa. Evidencia construção e bastante trabalho, e quanto a isso, só há méritos ao ator.
Tanto Dona Ermínia, quanto Dona Armênia defendem ferozmente
seus filhos. Não se importam com o entorno. São mães modernizadas e carentes, dominadas
pela eterna sensação de que os filhos serão crianças para sempre. Nenhuma
novidade, se olharmos à nossa volta, veremos dezenas delas. Uma tentativa de contraponto às mães relapsas
cujos custos da concepção acaba no colo dos avós, ou se limitam às milhares de fotos
das crianças nas redes sociais, em um regozijo desesperado a cada peripécia dos
fofinhos (serve também para pets).
A Lei.
Voltando à Lei Paulo Gustavo, o fato de grande comoção popular foi o falecimento do ator. No luto da família e nas homenagens diversas, aliadas às circunstâncias da morte por Covid-19, fez-se a oportunidade política para que a “classe artística” recuperasse as mordomias perdidas na reformulação da Lei Rouanet. De bons corações, o inferno está cheio. Faço abaixo algumas ponderações humildes sobre alguns pontos:
“Incluem-se nas atividades abrangidas pelos instrumentos
de seleção previstos no § 1º deste artigo as relacionadas a artes visuais,
música popular, música erudita, teatro, dança, circo, livro, leitura e
literatura, arte digital, artes clássicas, artesanato, dança, cultura hip hop e
funk, expressões artísticas culturais afro-brasileiras, culturas dos povos
indígenas, culturas dos povos nômades, culturas populares, capoeira, culturas
quilombolas, culturas dos povos e comunidades tradicionais de matriz africana,
coletivos culturais não formalizados, carnaval, escolas de samba, blocos e
bandas carnavalescos e toda e qualquer outra manifestação cultural.”
(Parágrafo 9º , Inciso III, Artigo 8º)
Poderíamos questionar esses parágrafo de algumas maneiras.
- Primeira: funk e hip-hop não são considerados “música” ? Na intenção de evitar que algum gestor mais
atento não aprove projetos que favoreçam a disseminação de músicas de baixo, ou
nenhum teor moral, os redatores fizeram questão de colocar esses dois estilos
de maneira separada.
- Segunda: “coletivos culturais não formalizados”, significa
que a turba de maconheiros dos DCE’s podem constituir coletivos, assim como a
turma do boteco, enfim, qualquer coletivo pode ser cultural. Eu colocaria a
categoria dos ônibus lotados, em plena pandemia, afinal, coletivos lotados já
são parte da nossa cultura há tempos.
- Terceira: “qualquer outra manifestação cultural”,
lembra-me daquele artista do século passado que colocou bigodes na Monalisa e
aquele vaso sanitário afirmando que eram obras de arte. A turma do DCE sempre acredita. Aqui em Juiz de Fora , recentemente aconteceu um bom exemplo, dá uma olhada.
Art. 16. Na aplicação desta Lei Complementar, os entes da
Federação deverão estimular que os projetos, iniciativas ou espaços apoiados
com recursos desta Lei Complementar incluam mensagens educativas de combate à
pandemia da covid-19, especialmente relacionadas ao distanciamento social, à
necessidade de ventilação de ambientes, ao uso adequado de máscaras e de álcool
gel e ao estímulo à vacinação.
Este artigo também foi redigido por alguém com um coração
bom suficiente para não ter uma cardiopatia resultante das sucessivas doses de
reforço de vacinas experimentais.
Art. 17. Na implementação das ações previstas nesta Lei
Complementar, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão assegurar
mecanismos de estímulo à participação e ao protagonismo de mulheres, negros,
indígenas, povos tradicionais, inclusive de terreiro e quilombolas, populações
nômades, pessoas do segmento LGBTQIA+, pessoas com deficiência, e de outras
minorias, por meio de cotas, critérios diferenciados de pontuação, editais
específicos ou qualquer outro meio de ação afirmativa que garanta a
participação e o protagonismo desses grupos, observada a realidade local, a
organização social do grupo, quando aplicável, e a legislação relativa ao tema
Artistas de verdade não admitem segregação alguma. Não há
nada mais segregador que do que “assegurar mecanismos de estímulo e
protagonismo” a alguns, em detrimento de outros.
Art. 18. Os entes da Federação poderão, na implementação
desta Lei Complementar, conceder premiações em reconhecimento a personalidades
ou a iniciativas que contribuam para a cultura do respectivo ente da Federação.
Essa é a parte mais simpática. Premiações significam que poderá
ser escolhido alguém de relevância para o setor cultural, e premiá-lo, é uma doação, um mimo ao filho querido. O
agrado financeiro é simbólico, mas o dinheiro é real, e público.
Conheço muitos artistas de verdade, independente das suas posições ideológicas, eles fazem acontecer sua arte, por seus próprios meios e suas convicções. Não são dependentes dos mecanismos estatais, nem de doações, nem de ajuda alguma. São honestos e verdadeiros na sua atuação social. Para estes, que passam ou passaram por dificuldades em função da pandemia, a ajuda de uma lei como essa não chegará. Ou porque não querem gastar o meu, e o seu dinheiro, em algo que poderia ser investido de maneira mais justa, ou porque não conhecem os caminhos para serem beneficiados com alguma quantia que auxilie sua produção e tire do sufoco quem realmente precisa.
Os tais caminhos já são conhecidos pelas Anittas da vida e outros
artistas fanfarrões, alienantes e despudorados. Para estes é que leis como esta são feitas, afinal,
como diria Dona Hermínia, " Mamãe Ama Vocês".